quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Sobre o Amor...

Eros & Psiquê. Antônio Canova
Sobre o amor.
“Quem ama nunca sabe o que ama; nem sabe por que ama, nem o que é amar” (Fernando Pessoa).
“E foram felizes para sempre”. Por trás desta ideia tão difundida pela Indústria Cultural (basta pensarmos em qualquer novela global) subjaz uma construção histórica, típica da modernidade, que remete ao amor romântico e à fantasia de que existiria um encontro ideal, o amor para toda vida, a alma gêmea, enfim, são inúmeras as formas de expressão desta ideia que permeia o imaginário ocidental.
O mito do encontro no qual Dois fariam Um é belamente exemplificado em um texto fundamental sobre o amor: “O Banquete” de Platão. Nele, através de Aristófanes, Platão discorre sobre a história de seres completos que foram, por inveja dos deuses, partidos ao meio, engajando-se desde então na busca pela metade que lhes foi tirada, para assim voltarem à plenitude. Tudo a ver com a ideia de alma gêmea, da metade da laranja, não? No entanto, para a psicanálise o amor estaria mais próximo ao mito construído por Platão neste mesmo texto e que é expresso por Sócrates: o amor, Eros, seria fruto do encontro de Poros e Pênia, traduzindo, o Recurso e a Pobreza. Portanto, por filiação, o amor é pobre, carente, sempre lhe falta algo. No entanto ele tem “o recurso”, condições para conseguir o que queri.
“Amar é dar algo que não se tem”, diz o psicanalista Jacques Lacan. Como assim? Bem, o homem é por definição um ser faltante e é porque lhe falta algo que ele segue desejando, imaginando objetos e situações que possam acalmar seu querer.
Porém, esta falta nunca é preenchida, é constitutiva do humano e justamente o que o impulsiona a viver, mantém aceso o desejo (não apenas o sexual, que fique claro!). Já percebeu que assim que alcançamos um objetivo, após o momento de satisfação segue um novo desejo? Por exemplo: Tudo que ela queria para ser feliz era se casar. Agora que se casou, tudo que mais quer na vida é ter um filho. Tendo este filho, seu sonho passa a ser ter uma casa própria, e por aí vai. Por mais realizada que se sinta uma pessoa, sempre haverá alguma coisa faltando. Assim a satisfação é sempre parcial, nunca completa.
Em relação ao amor, segundo o referencial psicanalítico, o amante seria aquele que julga dar ao ser amado algo que lhe falta enquanto que o ser amado acredita possuir algo que preencheria a falta em seu amante. Ledo engano, pois o que se dá é justamente aquilo que o outro não precisa, o que se tem não é necessariamente o que o outro quer. Isto pode parecer complicado, mas se traduz pelos desencontros da vida amorosa, ou simplesmente pela constatação de que, na prática, o amor não acontece como nas novelas e filmes. Fique tranquilo, você não é um azarado que não consegue viver um conto de fadas. Este desencontro amoroso, a insatisfação com a “cara metade”, em maior ou menor grau, acontece com todo mundo. “Ele não me escuta!” ou “ela não me entende” para simplificar.
A invenção de que o amor nos completaria plenamente é um artifício humano para lidar com o próprio desamparo frente à existência e manter para si mesmo a promessa de felicidade (e o discurso capitalista aproveita-se bastante disso, oferecendo inúmeras saídas fantasiosas, dito de outra forma, mercadorias, para preencher esta falta). A impossibilidade de completude amorosa prova-se a cada dia ao lado de quem se ama. O amor acontece não da forma perfeita que costumamos idealizar, mas deliciosamente problemático, cheio de encontros e desencontros, alegrias, angústias, paixão e indiferençaii. “É ferida que dói e não se sente” (Camões).
A idealização do amor romântico, histórica e típica do pensamento ocidental, esconde nuances e sustenta preconceitos como, por exemplo, em relação aos papéis atribuídos aos homens e mulheres. Tradicionalmente no campo das relações amorosas, as regras para os homens não são as mesmas destinadas às mulheres. Grosso modo, ao homem é permitido entregar-se a experiências eróticas concretas sem culpa, enquanto que a mulher deve ser mais reservada, recatada. O feminino ligado ao amor e o masculino à virilidade. Uma mulher sexualmente liberada não será vista com bons olhos, enquanto que um homem na mesma condição, é apenas um homem, estaria fazendo o que sua “natureza” ordena.
Felizmente esses estereótipos socioculturais de masculino e feminino, do que é ser homem e mulher estão em processo de mutação. Em entrevista para a Psychologies Magazine, 2008, o psicanalista Jacques-Alain Miller explica que ao homem tem sido cada vez mais permitido (e requerido) acolher suas emoções, a amar e de certo modo se feminilizar, ou seja, adotar posicionamentos e atitudes tradicionalmente atribuídas às mulheres. Estas, por sua vez, em nome da igualdade dos papéis, também adotam cada vez mais posturas tidas como masculinas. Esta divisão mais democrática de papéis permite, por exemplo, ao homem contemporâneo viver de forma plena a paternidade, trocando fraldas e afeto com seu filho de uma maneira, digamos, “mais maternal”. A máxima “homem não chora” cede lugar à idéia de que “homens também choram, por que não?”.
Além disso, neste cenário de mutação, a família, ou aquilo que se considera como tal, está escapando cada vez mais do retrato tirado no século XIX: o homem, antes o grande provedor, agora divide as contas com a esposa. Famílias homoparentais, produções independentes, ou seja, novos estilos de vida, de ser e estar no mundo. E consequentemente novas formas de amar (ou apenas formas de amar que estavam latentes, que “saíram do armário” quem sabe). Ainda segundo Miller, partindo do livro “Amor Líquido” do sociólogo Zygmunt Bauman, essa mutação dos papéis atribuídos a homens e mulheres marcam uma fluidez generalizada no teatro do amor, em oposição à fixidez de antigamente, amor tornado líquido. As pessoas estão sendo levadas a assumir seu modo de viver e amar e a respeitar formas de ser, de viver e de amar antes proscritas.
i “Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar - pois vinho ainda não havia - penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio ele de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis com efeito o que se dá.” – O Banquete, Platão.
ii A literatura sempre se adianta à teoria. Um romance belíssimo que retrata a relação amorosa em toda sua dimensão de doce e amargo é “A Insustentável Leveza do Ser” de Milan Kundera. Pautado por um início leve, o livro aos poucos se torna denso, pesado e faz o leitor sentir toda a ambivalência que permeia uma relação amorosa, da leveza da paixão inicial que perde altitude frente ao cotidiano. E isto também é bom.
Bibliografia:
KUNDERA, M. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1983.
MILLER, J.A. Entrevista realizada por Hanna Waar à Psychologies Magazine, outubro 2008, n° 278.
PLATÃO. O Banquete in: Os Pensadores, Rio de Janeiro: Ed. Abril, 1978

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