quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Na busca da felicidade

Na busca da felicidade[1]

O bom uso da lucidez

Entrevista a Jean-Pierre Winter[2] por Claire Fleury

Le Nouvel Observateur (NO). – Em 1999, disse nesta revista: «A psicanálise não é uma disciplina da felicidade.» Vinte anos depois, continua a afirmá-lo?

Jean-Pierre Winter. – Continuo! [Gargalhada]. Contudo, não é uma disciplina que leve, necessariamente, a se aceitar estar-se na infelicidade. De uma certa maneira, a psicanálise permite ao paciente aceitar a sua verdade. Mas não devemos iludir-nos. O acesso à verdade não é uma porta que se abre à felicidade. Lacan falava de momentos de «dessubjectivação» que acompanham o fim da análise.

N.O. – Mais vale ser-se um imbecil feliz?

J.P Winter – Há, sem dúvida, mais felicidade possível na imbecilidade. Mas é aqui que eu daria uma outra nuance ao que eu disse há vinte anos. Há, no melancólico, no que sofre do que se poderia chamar de uma patologia da lucidez, uma forma de humor e de relação à vida fundada no cómico, pelo menos, tanto como no trágico. Todos conhecemos o paradoxo do palhaço triste. Faz rir toda a gente excepto ele. Os humoristas vão buscar ao seu próprio desespero de como fazer rir os outros. Um dos materiais fundamentais nos quais Freud se alicerçou para descodificar a nossa relação com o inconsciente foram, justamente, os chistes. Aliás, é curioso como se esquece que “Os chistes e a sua relação com o inconsciente” é uma das suas obras mais volumosas.

N.O. – Qual é a relação entre o riso e a felicidade?

J.-P. Winter – Somos mais feliz quando rimos. Usualmente, faz bem. Mas não prova nada. Encontra-se, aliás, esta dimensão na análise.

N.O. – Pode-se rir no divã?

J.-P. Winter – Absolutamente. Podemos rir de nós próprios quando temos essa capacidade mas, também, nos momentos de emergência do inconsciente. Obviamente que isto depende do modo como o analista os releva. Mas não há nenhuma razão para fazer desses momentos uma tragédia.

N.O. – Os psicanalistas são pessoas felizes?

J.-P. Winter – Alguns são, definitivamente, infelizes, sinistros. Confundem o sério com o
espírito em série, ou seja, classificam, catalogam e têm uma visão restritiva do que têm de fazer. Não metem nessa visão, nem a imaginação nem a jubilação. Mas nem todos são assim! O que sempre me tocou em Françoise Dolto, com quem longamente trabalhei, era a sua maneira de “reencantar o mundo”, usando a expressão de Marcel Gauchet. Jacques Lacan era igual. Na prática analítica, as suas interpretações eram, muitas vezes, muito divertidas. Mas ele estava investido da função de ideal do psicanalista. No início da minha análise com ele, assisti a um dos seus seminários , numa altura em que eu era, ainda, um pouco exterior a este meio. Lacan disse: « Os crustáceos com hastes são os únicos que não se masturbam.» A assistência notou esta afirmação sem se manifestar. Eu fui o único, ou quase, que me ri. Admirando-me, chamei-lhe a atenção para isto. Respondeu-me: «É mesmo esse o drama».

N.O. – Lacan era mais pessimista.

J.-P. Winter – É verdade e Dolto mais optimista. Mas tinham, pelo menos, um ponto em comum: para eles, a psicanálise estava do lado do vivente. Nenhum psicanalista pode pretender dar a felicidade. Mas o que é certo, é que a psicanálise está do lado da vida. Depois, tudo depende de cada um. Para mim, se está do lado da vida, estou feliz. Pelo contrário, se me aborreço, acho isso “mortal”.

N.O. – Para os psicanalistas, a felicidade é suspeita?

J.-P. Winter - Sim se ela se afirma num discurso e se apresenta como uma denegação dos problemas. Pode, também, ser uma forma de indiferença ao mundo ou de imbecilidade. Mas na vida comum, se alguém mostra que está a sentir momentos de felicidade e se está consciente que a felicidade é efémera, isto não tem nada de suspeito, bem pelo contrário.

N.O. – Uma cura psicanalítica dá o direito a ser-se feliz?

J.-P. Winter – Sim, dá o direito de viver momentos de felicidade que são proibidos na neurose. Por exemplo, a pessoa proíbe-se de ser mais feliz do que o pai. Logo que encara a possibilidade de ser feliz nos negócios, no amor…, a pessoa sabota-se para que isso não aconteça. Há, também, as pessoas que estão sempre a queixar-se . A máquina do queixume pode representar um tal gozo inconsciente que é impensável livrar-se dele. Isto liga-se à questão do masoquismo ou, como disse tardiamente Freud, à questão da pulsão de morte. Colocar-se, constantemente, em situação de insucesso é uma tendência que todos temos. A análise permite relevar essa tendência, dar um passo para trás para se olhar a si próprio a ter essa tendência mas não, necessariamente, a satisfazê-la.

N.O. – O paciente pode encontrar-se perante o medo de deixar de sofrer?

J.-P. Winter – Não o podia ter dito melhor. É a «reacção terapêutica negativa». No momento em que tudo foi, de novo, reunido na análise, para que o paciente possa abandonar os seus sintomas, em vez de o fazer, ele volta-se contra o seu analista e torna-se agressivo. Um sintoma pode colar-se à pele como uma carraça a um cão. É por isso, aliás, que os psicanalistas têm dificuldade em compreender as terapias cognitivo-comportamentais (TCC) porque se sabe a que ponto «o equilíbrio» devido aos sintomas é frágil. Privar alguém do seu sintoma pode ser perigoso.

N.O. – O que é que pode acontecer?

J.-P. Winter – Quando o paciente se apercebe que, por detrás do seu sintoma, não existe nada, apenas o vazio. De qualquer forma, o vazio está sempre presente. Existe, em todos nós, um quanto de vazio. Mas é preciso poder enfrentá-lo. Mas o paciente sente, fisicamente, a vertigem. Pensa que é o vazio à sua volta que é a causa. Mas, é evidentemente, o vazio que está dentro dele que lhe faz medo. Por isso, tem um medo imenso de se livrar dos sintomas. Há, também todos os benefícios que se podiam retirar dos sintomas, como por exemplo, explorar o meio onde vive em nome da sua fobia. Por vezes, é o próprio meio envolvente que se opõe à perda do sintoma.

N.O. - Evocou as TCC. Os seus partidários criticam à psicanálise de esgaravatar onde faz
doer, de mergulhar nos meandros do passado em vez de ajudar simplesmente o paciente a ir melhor.

J.-P. Winter – Não é por não desenterrar as coisas que elas deixam de existir e de produzir os seus efeitos de deterioração. É aqui que existe um mal entendido. Na psicanálise, a questão não é desenterrar o que foi enterrado mas o que foi mal enterrado. A finalidade de uma psicanálise não é de se recordar para se recordar, é de se recordar para, finalmente, esquecer.

N.O. – Uma cura psicanalítica é uma conquista da liberdade interior?

J.-P. Winter – É uma conquista do corpo. A psicanálise não separa o corpo do espírito, ambos caminham em conjunto. Esta conquista dá o sentimento de uma muito maior liberdade interior porque a pessoa reapropria-se das partes do seu corpo que até então estavam mortas. O toque, o ouvido, a visão, o paladar…não funcionavam antes da análise. Depois, a pessoa reapropria-se deles na acção, pintando, fazendo um filho, investindo-se no seu trabalho. A energia que, na neurose, estava ao serviço da mortificação de uma parte de si, é posta em liberdade para outra coisa.

N.O.- Uma análise conseguida, é, também, a promoção do livre arbítrio?

J.-P- Winter – Na neurose, a pessoa proíbe-se de julgar as pessoas tutelares. O neurótico não pode dizer a si próprio; « Isto é bom para mim, aquilo não é.» ou « O importante é o que eu desejo e não o que o meu pai deseja.». Se a pessoa pode dizer «a minha mãe sofre mas não é por minha causa, mesmo se ela mo repetiu durante vinte anos» faz um juízo crítico. O importante é a questão da culpabilidade. O que a psicanálise pode dar, é a pessoa separar-se do desejo dos mais próximos sem culpabilidade. «Eu desenrasco-me com a minha história.»

N.O. – Hoje, sofre-se de menos proibições. É-se mais feliz?

J.-P. Winter – Lacan dizia que se se encontrasse o que se pedia, estar-se-ia «em falta da falta». A sociedade de consumo é muito angustiante porque ela responde à necessidade mas não ao desejo. Um pouco como uma mãe que responderia sempre, ao seu bebé, dando-lhe de mamar. Mas não é isso que o bebé deseja! Vivemos numa sociedade «em falta da falta».

N.O. – Estamos quase no Natal.

J.-P. Winter – Quando uma criança pede um bombom, em vez de lho dar, Dolto dizia que se devia falar-lhe do bombom. Com certeza que não é para tomar à letra. O que ela queria dizer era que, se não se fizesse assim, estava-se a privar a criança de todo um imaginário. Tem de se lhe permitir que ela possa fantasmizar à volta do seu desejo. Hoje, os jovens pedem consolas de jogos para o Natal. Consolas e mais consolas! O que nos leva a crer que eles têm todos necessidade de serem consolados!


[1] A partir da entrevista inserida no dossier , “A la poursuite du bonheur”, in Le nouvel Observateur, nº2303-2304, 24 Dezembro 2008- 7 de Janeiro2009 .
[2] Psicanalista, antigo aluno de Jacques Lacan.

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