quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O CRIME COMO CONSEQUÊNCIA DO SENTIMENTO DE

O CRIME COMO CONSEQUÊNCIA DO SENTIMENTO DE
CULPA: UMA INTERLOCUÇÃO ENTRE DIREITO E
PSICANÁLISE NA VISÃO DE FREUD E LACAN
Assedina Pereira Esteves
Tanto Freud quanto Lacan se interessaram pela interlocução entre o Direito e a
Psicanálise. Contudo, há diferenças entre os dois na maneira de abordá-la. Freud, apesar
de vislumbrar a prática psicanalítica no campo jurídico, não chegou a formalizar as
coordenadas para que isso se efetivasse. Ele recorreu em diversos momentos da sua obra
ao campo do Direito, principalmente, no que diz respeito aos delitos, já que ele
outorgava, como causa da lei, os crimes do parricídio e incesto. Entretanto, a abordagem
freudiana em relação à lei, estruturada em torno do complexo de Édipo e da culpa pelo
parricídio decorrente dele, tornou-se uma teorização difícil de ser sustentada nos dias de
hoje. Lacan, por sua vez, indicou alguns caminhos para que o discurso psicanalítico
pudesse operar no campo jurídico. Com Lacan, o paradigma não se coloca em torno do
sentimento de culpa, mas da responsabilidade.
Sendo assim, começamos por revelar o que, para Freud, deu origem ao
sentimento de culpa.
Freud realizou diversas modificações na teorização sobre o sentimento de culpa,
entretanto, sempre centralizou sua abordagem no ato parricida. Para Freud o Complexo
de Édipo é a conexão, em cada sujeito, do universal da culpabilidade. Sendo assim, o
mito do parricídio expresso no texto de Freud “Totem e tabu”, no ano de 1912, destaca
a existência de uma violência estrutural na história da humanidade - houve um crime:
... Freud supõe a existência, nos primórdios da humanidade, de um
agrupamento humano denominado horda [...] A horda primeva era
constituída pelo pai, seus filhos homens, e as mulheres. O pai
detinha todo poder sobre a tribo. Todos, sem exceção, estavam
submetidos à sua tirania. Quando os filhos cresciam, o pai os
expulsava do clã. Com o passar do tempo, os homens expulsos se
uniram e voltaram à tribo. Eles mataram o pai e comeram sua
carne (SALUM, 2001, p. 21).
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Quanto ao incesto, não é o pai que o inventa. A função do pai tem um lugar
muito importante nessa história, pois está no centro do Complexo de Édipo, revelado,
sobretudo, pelo inconsciente:
Fundamentalmente, sua função no complexo é o interdito da mãe,
é barrar o desejo imperioso materno. É aí que o pai se liga à lei
primordial da interdição do incesto. O interdito é esse não que o
pai sustenta, dirigido à mãe e à criança ao mesmo tempo. Em
relação ao filho a ordem paterna dirá: “não deitarás com tua mãe!”
E a mãe submeter-se-á à lei do pai, na medida em que a ordem
paterna interdita-lhe possuir o filho: “E não recolocarás em teu
ventre seu filho”! (BARROS, 2005, p. 97).
Assim, os dois crimes primordiais – parricídio e incesto – deram origem à
própria civilização humana. Sustenta Freud que o sentimento de culpa é uma
conseqüência do remorso pelo parricídio, e dessa culpa, decorrente do parricídio,
originou-se a civilização, bem como suas conquistas. Assim, a relação culposa do
sujeito com o pai, se tornaria o ponto no qual se situa toda a problemática do sujeito
com o social.
Para a psicanálise freudiana, o laço social pôde existir em decorrência desse
crime primordial e da instauração da lei que foi conseqüência dele. Foi isso o que, para
Freud, determinou a passagem da horda para a cultura humana. Após a morte do
chamado pai primevo não houve acordo entre os irmãos, foi preciso instituir uma nova
lei - “não matarás”. Este crime primordial teria dado origem a uma lei universal. O mito
do Édipo foi, para ele, uma tentativa de formalizar a inscrição da violência na
subjetividade de cada um. Através desse mito, a violência passa a ser um crime
cometido não somente pelos irmãos da horda, este crime é reeditado por cada sujeito
neurótico.
Entretanto, Freud desenvolveu a psicanálise em um mundo no qual era possível
ver os indicativos de uma crença na autoridade da lei. O Édipo freudiano foi uma
demonstração dessa crença. O sujeito neurótico - histérico ou obsessivo - mostrava
através do seu sintoma que a lei do pai funcionava porque este falhava e, desta forma,
transmitia-se a castração. O que era sentido como mal-estar era o retorno da falha do
pai sobre o sujeito, produzindo sintomas.
Contudo, quando o ponto de referência outrora representado pela lei edipiana
vacila, o mal-estar retorna, não apenas simbolicamente, através dos sintomas, mas em
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atuações, e, em grande parte dos casos, em atos violentos que são configurados como
crimes.
Sabe-se que o pensamento freudiano que se estrutura em torno da culpa está
muito bem assimilado pelas instituições judiciais e de certa forma, ele está de acordo
com os ideais preconizados por estas instituições. Entretanto, é necessário mudar este
paradigma, o que acarreta um desafio para o trabalho com a psicanálise nestes lugares.
Ora, em nossos dias, as atuações criminosas já não nos deixam ver a estrutura
edípica e, por conseguinte, o sentimento de culpa. Pensar uma clínica com sujeitos que
praticaram atos infracionais a partir da referência do Édipo conduz a uma lógica
específica da direção do tratamento e implica em fazer valer um tipo de resposta sobre
o ato que tinha na culpa sua coordenada.
É importante saber que vários psicanalistas têm se dedicado, não somente à
aplicação da psicanálise no contexto jurídico, mas, também têm participado da
construção de políticas públicas e execução de programas que visam o tratamento da
violência e do crime nos mais diversos espaços – penitenciárias, cumprimento de
medidas sócio-educativas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, projetos
comunitários, dentre outras.
Sendo assim, interessa-nos precisar qual o encaminhamento que a psicanálise de
orientação lacaniana tem adotado nestes espaços, pois, com Lacan, o paradigma não se
coloca em torno do sentimento de culpa, mas da responsabilidade.
Sobre a questão da responsabilidade, Mattos afirma que:
Trata-se de pensar que o fato de haver algo em nós que é,
essencialmente, desobediente é a causa mesma de
responsabilizarmos por isso. Se tudo fosse calculável e obedecesse
a nossa razão e as nossas leis de previsibilidade, bastaria uma
máquina para calcular o que deveríamos fazer e, então, realizá-lo.
Um cálculo preciso não exige responsabilidade, mas sim perícia.
Portanto, é justamente porque as coisas não são assim que é
possível pensar em responsabilidade, que é necessário nos
responsabilizarmos por nossos atos e por suas conseqüências
(2002, p. 9).
Sendo assim, Lacan, ao fazer a releitura do Édipo freudiano a partir da noção de
lei, privilegiou como cada um se coloca frente à lei do pai. Ele afirmou, em seu texto
sobre “Criminologia”, que não existe sociedade na qual não se constitua uma lei, seja ela
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de costume ou de direito. Contudo, da mesma forma que há lei, há transgressão. Lacan
considera que a lei faz o crime. O trabalho da justiça, ao longo da modernidade, foi
regular as relações entre os homens a partir do que não se podia fazer. Tudo pode ser
permitido, menos o que está explícito como uma proibição. Por isso o crime, para Lacan,
não pode ser pensado fora da relação do sujeito à lei, da conexão do sujeito ao campo do
Outro.
Toda sociedade demonstra a relação do crime à lei através dos castigos. O
castigo, uma punição, é a responsabilidade. Para Lacan, punir é responsabilizar e ser
responsabilizado. A obediência à lei se dá através da crença de que se pode responder
frente a ela. Crer na lei é o que permite advir, como resposta, um sujeito responsável.
Lacan afirma que a questão da punição social comporta um estigma que marca o sujeito
para a sociedade mas, que a cura que esta espera só acontecerá se houver no sujeito uma
integração de sua verdadeira responsabilidade e que em algumas situações a punição
talvez seja o que ele procura.
No texto “Responsabilidade: medida do homem, questão para o sujeito”, Morelli
(2001) lembra que se o Estado imputa responsabilidade, se responsabilidade equivale a
castigo, é somente sob o ponto de vista do coletivo. E a psicanálise, ao não desumanizar
quem comete um crime, ao tratá-lo na sua particularidade, mostra que o cumprimento
de uma medida jurídica, o cumprimento de uma pena, de um castigo, só terá, de fato,
algum valor para o homem se houver assentimento subjetivo, se for a ele possível
formular uma questão sobre a sua responsabilidade no ato.
A psicanálise não "desculpabiliza" o sujeito, mesmo porque sabe da importância
da culpa na formação dos sintomas e na direção do tratamento. O que a psicanálise
aponta é que mesmo que a sanção prevista por um código penal comporte um processo
que exija aparelhos sociais muito diferenciados, esse assentimento subjetivo é
necessário à própria significação da punição. A psicanálise nos aponta que a
responsabilidade pode ser ou não uma questão para o sujeito em determinado momento,
em determinado ato. E que, se o sujeito não colocar em questão a sua relação com o ato,
não questionar a sua responsabilidade, ele não assentirá à punição, muito embora possa
cumprir o castigo.
Sendo assim, assentir com a punição amplia as possibilidades de o sujeito
ressignificar o ato criminoso comportando mudanças na esfera pessoal e social. Desta
forma, o sujeito estará implicado nas suas ações e conseqüências advindas de seu ato.
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Assim, a responsabilidade em psicanálise não diz respeito somente ao
cumprimento da norma jurídica, ela está relacionada aos modos de resposta subjetiva,
pois, para Lacan, o sujeito é considerado uma resposta do real. Portanto, na clínica e nas
instituições que acolhem indivíduos com problemas com a lei, é necessário verificar as
formas como o sujeito aparece, os modos como responde à emergência do real. O sujeito
pode responder conectado ao campo do Outro, ou pode desconsiderá-lo. Esse é o ponto
que deverá ser levado em conta na noção de responsabilidade, já que, para Lacan, o
homem só é reconhecido por seus semelhantes através dos atos cuja responsabilidade ele
assume.
Contudo, trataremos nesse momento de esclarecer como Miller faz sua leitura
sobre as colocações de Freud e Lacan diante do crime e do sentimento de culpa.
A responsabilidade, tal como Lacan a formula inicialmente, torna-se
problemática. A princípio, ela estava referida ao campo do Outro, ao Nome-do–Pai que
condicionava toda experiência do sujeito, simbolicamente determinada. Porém, a
formulação sobre o Outro sofre modificações e desdobramentos ao longo da história da
psicanálise de orientação lacaniana. Vejamos:
Segundo Miller (1996-97), estamos na época do Outro que não
existe. Essa afirmação nos indica que estamos diante de mudanças,
não somente na forma dos sintomas, mas, também na configuração
do crime e, por conseguinte, da possibilidade de responder diante do
Outro da lei.
Assim, recapitulando, Miller diz que o Complexo de Édipo foi a maneira que
Freud encontrou para falar da instauração da lei para o sujeito. A lei do pai instaurava a
subjetividade como determinada pelo campo do Outro. A função paterna, neste sentido, é
crucial para a psicanálise, mas há diferenças em Freud e Lacan na maneira de abordá-la.
Na perspectiva freudiana o pai opera a renúncia pulsional exigida pela cultura através da
ameaça de castração. Pela função paterna o incesto ficava proibido. A partir de Freud,
Lacan formulou a função paterna edificada não no edipianismo, mas no significante do
Nome-do-Pai. Através da instauração da metáfora paterna, a criança poderá ter acesso à
significação fálica, permitindo uma ordenação do desejo. Assim, o pai era considerado
por Lacan um obstáculo para a sexualidade da criança, mas, também, a possibilidade de
sua realização. Nesse sentido ocorre o que Miller considera desdobramentos na
psicanálise de orientação lacaniana. Vejamos:
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No Seminário 5 “As formações do inconsciente”, fica explícito que o pai é aquele
que, além de dizer não, diz sim. A instauração da lei legaliza o desejo. Antes de ser um
representante automático da lei, o pai é um transgressor. A lei do pai não é a regra
automática e cega, ela admite exceções, levando em conta o particular.
No Seminário 10 “A Angústia”, Lacan prepara a pluralização do Nome-do-Pai.
Ele passará a falar, não do Nome-do-Pai, mas dos Nomes-do-Pai. Trata-se de privilegiar,
não o falo e a castração, mas a constituição do objeto a. A função do pai não será a de
representar a lei, mas a de unir o desejo à lei. A lei do pai traça o caminho do desejo do
filho através do desejo do pai como desejo do Outro.
No Seminário 17 “O avesso da psicanálise”, Lacan retira do pai o imaginário
mitológico freudiano de ser castrador e tirânico. Não é o pai que determina a castração,
mas a linguagem. O pai, ele mesmo é castrado e, por isso, pode transmiti-la ao filho.
Neste seminário, Lacan começa a precisar melhor a vertente real do pai.
A função paterna, no sentido lacaniano, será complexificada a partir dos registros
distintos – o real, o simbólico e o imaginário. O pai simbólico e o imaginário são leituras
do Édipo freudiano. O pai simbólico se exerce por meio da operação do Nome-do-Pai na
metáfora paterna e, por sua incidência, se inscreve a proibição. O pai imaginário tem por
função privar a mãe da criança, e, através do pai real, se pode estabilizar a posição sexual.
Observa-se que estamos assistindo a uma série de remanejamentos sem limites do
uso dos Nomes-do-Pai. Considerar o Nome-do-Pai entre realismo e nominalismo quer
dizer que, diante do universal da função paterna, vários nomes podem ser usados para
fazer funcionar esta função, muito embora, mesmo que se fizesse uma lista, isso não
impediria o surgimento do universal do Nome-do-Pai. Há um realismo na função paterna:
ela define um impossível. Portanto, há o real do gozo que, cada sujeito, caso a caso,
deverá nomear. O Nome-do-Pai consiste, então, na nomeação, por cada um do encontro
com o impossível.
Assim, na relação do Direito com a Psicanálise, onde o primeiro visa o universal
da responsabilidade, é pela solução particular que se pode construir a possibilidade de
uma resposta. Nesse sentido, o direito terá que ser inventado, já que a responsabilidade,
para a psicanálise, não é da ordem do ideal, mas se coloca para cada um. A
responsabilidade restaurada no sujeito, corresponde à esperança, que palpita em todo ser
condenado, de se integrar num sentido vivido. E justamente por que a verdade que ela
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busca é a verdade de um sujeito, precisamente, que ela não pode fazer outra coisa senão
manter a idéia da responsabilidade, sem a qual a experiência humana não comporta
nenhum progresso.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, S. (1912). “Totem e tabu”. In: Obras Completas de Sigmund Freud (ESB). Vol.
XIII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969.
MATTOS, Sérgio de. Por nossa posição como sujeitos, somos sempre responsáveis. As
Versões do Pai, a Lei e o Fora-da-Lei. Curinga, 2002.
MILLER, J.A.(1996-97). El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós,
2005.
SALUM, M.J.G.Freud e a culpa: a culpabilidade antecede o crime. Lacan e a Lei, Curinga, nº
17, 2001.
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