quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Não é possível uma abordagem compreensiva dos atos infracionais cometidos por

Não é possível uma abordagem compreensiva dos atos infracionais cometidos por
adolescentes sem incluir um estudo minucioso das motivações conscientes e
inconscientes deles, uma avaliação correta do papel dos pais e da sociedade na gênese e
manutenção do problema. Sendo assim, este trabalho apenas pretende discutir questões
associadas à violência discorrendo sobre as possibilidades de atuação do Direito e da
Psicanálise neste contexto.
De fato, como poderemos esperar de jovens que em seu processo de constituição
como sujeitos tiveram um encontro com a violência familiar, sexual, com a falta
educacional, falta de alimentação, esporte, lazer, entre outros, a invenção de outra forma
de responder aos conflitos? Estes sujeitos não existem como sujeitos de direitos?
A criação de programas de combate à violência de todos os tipos apenas mantêm
a utopia de que a ordem social é boa e sendo assim deve-se domesticar aquilo que foge
como comportamento “normal”, considerado desviante. As medidas vão desde a
simples advertência, passando pela obrigação de reparar danos, prestação de serviços à
comunidade, liberdade assistida, regime de semi-internação, até, como último recurso, a
privação total de liberdade em regime de internação. Estas medidas abrangem
adolescentes de 12 a 18 anos, considerados por lei, inimputáveis. Contudo, qual o
sentido das medidas sócio-educativas para os adolescentes? Já foram consultados sobre
seu efeito dentro do mundo em que foram capturados?
Para que as medidas sócio-educativas sejam aplicadas ocorre um processo na vida
do adolescente. Após a ocorrência do ato infracional como furto, roubo, entre outros,
tipificado no Código Penal, a polícia é acionada, faz-se uma ocorrência policial,
inquérito na delegacia e, encaminha-se o adolescente (e a documentação referente aos
delitos) à Promotoria de Justiça que poderá ou não apresentar uma “representação”,
fundamental para se iniciar um processo na esfera judicial.
Quando chega ao juiz, este pode determinar a realização de um estudo aos
profissionais do Serviço Social ou Psicologia, o que irá subsidiar sua decisão em relação
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ao caso. Portanto, o laudo desses profissionais deve ser um momento para se apontar
possibilidades para esse adolescente, situando-o em seu contexto e sua história,
lembrando que sua relação com o Outro em sua dimensão social e legal está
profundamente afetada. É importante ir além de um parecer que possa apenas “rotular”
ou segregar para que seja facilitado aos profissionais do Direito a função instauradora
do sujeito, além da possibilidade de que uma questão possa ser colocada para este
adolescente e seus familiares. Assim, ao administrar as medidas sócio-educativas, o
juiz não se aterá apenas às circunstâncias e gravidade do delito, mas sobretudo, às
condições pessoais do adolescente de acordo com os critérios do ECA – Estatuto da
Criança e do Adolescente.
Entretanto, a implementação das medidas sócio-educativas é tarefa das mais
complexas a ser enfrentada. É necessário investimento político, coragem e, uma certa
invenção, para fazer da letra fria da Lei um instrumento de realização de justiça,
abdicando do modelo de segregação e maus-tratos, que cronifica a situação da
criminalidade, para a construção de uma rede e formas de trabalho com os adolescentes
que apostem, sobretudo, no respeito à situação de cada autor de um ato infracional,
pensando esse sujeito como singular, ou seja, como sujeito de respostas singulares pois
cada um traz consigo suas próprias marcas. Um sujeito de Direitos sujeito a Deveres,
desvencilhado da palavra que o nomeia, localizando-o na vida como “infrator”.
Contudo, para que isso ocorra é necessário que cada sujeito se localize aí, no
espaço onde foi interpelado pela Lei e que possa pensar em como se arranja, pois na
tentativa de dar conta dos incômodos que o invadem, desprovido de algo que pensa ter
obrigação de receber e diante de uma não-resposta, o adolescente se posiciona como
vítima ou com total indiferença.
Mas há que se questionar: como esse sujeito limitado, acostumado com sua faltaa-
ser e com sua falta-a-ter poderá endereçar sua demanda de reconhecimento e se fazer
enxergar por uma sociedade que o ignora? Talvez a partir de um fato grotesco e violento
como aquele ocorrido em um ônibus, na cidade do Rio de Janeiro, apresentado pela
mídia ao mundo e ao vivo pelas redes de televisão:
“Jovem seqüestra ônibus e mantêm presas várias vítimas, durante
quatro horas, dentre elas Geísa, a vítima fatal”.
Uma leitura mais atenta deste caso permite, a partir do documentário relativo ao
fato (“Parada 174”), uma melhor compreensão da situação, lembrando que não basta um
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olhar puramente voltado para a violência e o ato em si, mas um olhar voltado para o
adolescente em questão, levando em conta sua história de vida. Um sujeito que é
singular e que responde de forma singular aos eventos que a vida lhe trouxe. Um jovem
que sai de drama familiar (cabe aqui análise sobre como a imagem do pai é importante e
sua ausência, não é sem conseqüência uma vez que o pai é que sustenta um lugar que
permita ao sujeito buscar ideais na cultura e encontrar saídas para suprir suas faltas, que
não sejam necessariamente através da violência) e que alimenta o sonho de ser artista de
televisão.
Afirma Fernanda do Valle (2003, p. 86):
“Sabemos que a função paterna, instância instauradora da Lei, está
em declínio em nossos tempos modernos, permitindo ao sujeito
estabelecer identificações lineares ao mercado de consumo, aos
artefatos desse mercado (roupas, sapatos, drogas, amores...), ao
grupo do qual participa, ao bando com quem vive, com a escola,
com o trabalho e segue aí afora... até, como é o caso de que
tratamos, à marginalização e à delinqüência. Relações que buscam
uma inscrição no campo do Outro, através da marca de uma
identificação narcísica, saídas para um impasse frente à castração”.
O intrigante neste caso é que este jovem não pleiteava nada, não tinha desejo de
roupas caras, tênis de marca (como é comum nos casos que envolvem crianças e
adolescentes que cometem atos infracionais). O que queria esse sujeito? De acordo com
Cristina Nogueira (2003), o psicanalista argentino, radicado na França, Hugo Freda
(1999) trata os atos de delinqüência juvenil como um apelo ao pai, cuja intenção é
encontrar essa inscrição no Outro.
Esse sujeito encontrou no ato de violência uma forma de ser visto e ouvido,
pode-se pensar em um pedido de socorro diante do abandono:
Façam silêncio! Tem alguém dizendo algo que nem ele próprio está
sendo capaz de ouvir. É quase um ruído prestes a explodir na cara
de quem não se dispõe a escutar. “A violência se dá em
espetáculo”. A cultura brasileira é marcada pela encenação; “cenas
da vida real” (VALLE, 2003, p. 87).
E a violência literalmente explodiu, na cara de Geísa, ferida no rosto não pelo
adolescente “infrator”, mas por um tiro fatal de um policial, no momento em que a cena
teatral preparada pelo adolescente parecia chegar ao fim, o que demonstra o quanto os
operadores do Direito estão despreparados para os embates com a violência. A polícia
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acaba, nesse momento, por assumir o papel principal nessa peça. Na verdade parecia
aguardar seu momento de assumir a dramaturgia que até então tinha como protagonista
um jovem adolescente infrator. Preocupados em aparecer, mídia e polícia reforçam o
final trágico, afinal, no espetáculo o final esperado é a morte do bandido. Neste caso o
tiro saiu pela “culatra” em dois sentidos: morre a refém e a atuação da polícia, é
desqualificada. Mas ainda sem um final aguardado por todos os expectadores, a polícia
providencia um sufocamento do adolescente, sob aplausos da população e encerra a
cena, um “Grand Finale”!
A morte, assim, encerra mais um episódio de violência onde a sociedade sai
satisfeita: houve a prevalência da Lei!
O filme “Infância Roubada” também traz mensagem que desperta atenção: Um
jovem, após tentativa de assalto, acaba por levar consigo, no carro da família, um bebê.
A trama se desenvolve a partir das reminiscências que a convivência com o bebê traz ao
“bandido” em questão. Tomado de carinho pelo bebê o jovem busca resgatar sua própria
infância roubada após a doença e morte da mãe e pela agressividade do pai, quando foge
para viver nas ruas. Aqui, ao contrário do documentário citado acima, se percebe um
olhar diferenciado da polícia e da família assaltada em relação ao adolescente autor do
ato infracional. No momento do embate final o pai do bebê na tentativa de reaver o filho
usa a palavra (diálogo) para atingi-lo, ao invés de usar a violência. A polícia surpreende
quando aguarda o momento que o próprio adolescente é trazido à realidade. Uma
conversa (uma escuta) que favoreceu ao adolescente sair por outra via que não a
violência.
Assim, se atualmente temos vários programas que têm como objetivo melhorar a
questão da violência e diminuir o sofrimento destes jovens, há que se trabalhar em rede.
Apenas um órgão, trabalhando de forma solitária, não irá atender à demanda que se
apresenta na realidade atual do país. Dessa forma, cada programa que assuma, através
de seus técnicos, parte das alternativas de saída para essas crianças que, sem orientação
familiar, irão atuar em ambientes onde seja visto e reconhecido como alguém (chefe de
gangs, donos de pontos de drogas, entre outros).
Ora, a instituição é criada objetivando a produção de efeitos que tornem possíveis
outras saídas para o adolescente que não pela via da violência. Que não se procure um
ideal de adaptação que faça cessar os conflitos, mas sim algo que possibilite um novo
posicionamento do sujeito diante das agruras que a vida lhe apresenta.
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Este é o grande desafio para quem busca trabalhar com os adolescentes em
situação de conflito com a Lei: permitir ao sujeito que fale, escutá-lo para ajudá-lo a
inventar novas formas de saída, que não o gozo pela violência. As intervenções devem
visar a implicação dos sujeitos nas situações para que repensem, coloquem em palavras
e percebam qual sua responsabilidade na trama encenada. Fazer emergir, através da
escuta, um sujeito que se interrogue e que vacile diante da posição endurecida que
apresenta nos atos infracionais e agressivos. Uma escuta que propicie uma implicação
subjetiva e anime esse jovem por um querer dizer e um desejo de saber de si, do outro,
que faça surgir daí uma demanda. Esse sim é o objeto psíquico a ser construído para
quem sustenta a idéia de querer trabalhar com esses jovens, a demanda, o lugar do
Outro que frequentemente é mediada pelos objetos de consumo e que promove a
passagem ao ato de roubar e matar o Outro para se adquirir o objeto de consumo
desejado. Essa relação com o Outro indica o quanto na nossa cultura a dimensão do
outro como alteridade está encoberta e reduzida nas relações sociais. O Outro é apenas
uma extensão de nós mesmos e dos objetos.
A prática jurídica, ao atender problemas contemporâneos que atingem a
sociedade, faz apelo aos profissionais da área de humanas, incluindo a Psicanálise, para
que juntos busquem a melhor forma de lidar com as questões da violência, cada dia
mais crescente em nosso país.
Diante das novas formas de sintoma na atualidade, inventar novas formas de
trabalhar estas questões é um desafio ético, no qual se devem implicar os profissionais
que não recuam do encontro com as novas propostas dos sujeitos diante do mal-estar
contemporâneo e na construção das políticas públicas e, ainda, fazer com que o campo
do Direito partilhe respeitosamente da possibilidade de propiciar intervenções em
função da necessidade dos acontecimentos.
Sendo assim, Psicanálise e Direito podem apostar na possibilidade de
subjetivação desses jovens. O juiz numa dimensão simbólica deverá ser percebido como
um enunciado em nome da Lei para alguém cuja função paterna (ausente ou inexistente)
deixou furos.
Mas é possível, sim, acreditar na possibilidade de aplicação da Psicanálise em
uma Instituição que abriga esses adolescentes em conflito com a lei. Depende do
psicanalista, da forma de abordar cada caso como um caso em particular e um sujeito
singular e ainda, do encontro com cada jovem.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NOGUEIRA, Cristina. Liberdade assistida: a construção de um novo espaço. Tô fora: o
adolescente fora da lei – o retorno da segregação/Fernanda Otoni de Barros, coordenadora. –
Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
VALLE, Fernanda do. A reincidência de atos infracionais em adolescentes em conflito com a
lei: marcas de uma subjetividade. Tô fora: o adolescente fora da lei – o retorno da
segregação/Fernanda Otoni de Barros, coordenadora. – Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
Documentário “ Parada 174”
Filme: “Infância roubada”
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