quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O LUGAR DA SUBJETIVIDADE DO PORTADOR DE INSUFICIÊNCIA

O LUGAR DA SUBJETIVIDADE DO PORTADOR DE INSUFICIÊNCIA
RENAL CRÔNICA
Alessandra Carvalho Tostes...........................................................................................5
Pensar sobre o mundo subjetivo do paciente portador de insuficiência renal
crônica (IRC) em hemodiálise não é, com certeza, tarefa fácil, dada a complexidade de
cada sujeito, do tratamento, da (s) doença (s) de base que se sobrepõe(m) à renal e da
cronicidade desta última.
E a subjetividade, do que se trata? A subjetividade pode ser definida como
um conjunto de condições que torna possível que instâncias individuais e coletivas
estejam em posição de emergir como território existencial e é nessa perspectiva que o
sujeito vai enfrentar a questão de viver em momentos de situação limite como estar
entre a vida e a morte. Nesses momentos, produções originais de subjetividade podem
intervir no processo de adoecimento e recuperação, levando em consideração a
interação do paciente com o espaço, a equipe de saúde que o assiste e a partir de sua
própria postura de vida (classe social, história de vida, entre outros).
Define-se um quadro de IRC quando, a partir do funcionamento renal
reduzido, ou mesmo anulado, os rins deixam de fazer a filtração das impurezas do
organismo configurando uma síndrome urêmica, ou seja, um conjunto de sinais e
sintomas provocados por anormalidades fisiológicas e bioquímicas, representado pelo
aumento da concentração de substâncias, como uréia e creatinina, no organismo. Os
principais sintomas observados na síndrome urêmica, dependendo da gravidade,
duração e causa, são: oligúria (parada de eliminação de urina), edema (acúmulo de
líquidos no organismo), hipertensão arterial, anemia, fadiga, anorexia, náuseas, vômitos,
insônia, câimbras, palidez cutânea, dismenorréia, atrofia testicular, impotência,
infertilidade, déficit cognitivo, déficit de atenção, confusão, sonolência e coma. Ao
diagnóstico deste conjunto de dados clínicos, fisiológicos e bioquímicos, e à sua
irreversibilidade, deu-se o nome de IRC – Insuficiência Renal Crônica.
Na vigência dessa insuficiência existem duas terapêuticas a serem utilizadas:
o tratamento dialítico, no qual um sistema artificial substitui a função renal e o
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transplante renal que proporciona melhor qualidade de vida ao paciente uma vez que se
liberta da máquina.
A hemodiálise normalmente é feita em unidades especializadas, credenciadas
pelo SUS – Sistema Único de Saúde - e constitui-se em um procedimento que conecta o
paciente a uma máquina, o rim artificial, através de fístulas artério-venosas, em média
por quatro horas, com uma freqüência de três sessões semanais.
Cada paciente tem uma problemática diferente, mas é comum encontrar o
paciente lidando com situações de medo, perdas reais e simbólicas e carência afetiva,
tendo que modificar quase totalmente seus hábitos de vida, fato que dá a essa doença
uma conotação toda especial do ponto de vista psicológico. Dessa forma, realizar diálise
é ter que entregar e confiar sua vida nas mãos do Outro e dos equipamentos.
Algumas questões podem ser levantadas quando objetiva-se compreender os
efeitos psicológicos causados pelo desenvolvimento da IRC. Assim, o que representa
para o paciente dialisado estar conectado a um sofisticado aparelho, atualmente podendo
ser computadorizado, que executa as funções antes realizadas pelo seu próprio corpo? É
a máquina-prótese robótica funcionando, como extensão do corpo do homem,
permitindo-lhe viver. Qual o lugar da subjetividade do sujeito portador dessa patologia e
como ele subjetiva essa experiência? Como constrói sua vida ao redor dessa máquinadependência?
Boa parte dos pacientes em tratamento se sente beneficiada por ter a
alternativa da hemodiálise para prolongar suas vidas e até simboliza a máquina como a
própria vida. Porém, alguns indivíduos vivenciam uma situação ambígua, ou seja, ao
mesmo tempo em que representa a máquina de diálise como algo vital, que “salva”,
simboliza-a também como um objeto persecutório e destruidor. Essa ambigüidade
inferida na forma como enunciam simultaneamente uma proposição e, imediatamente, o
seu contrário, revela bem o conflito psíquico que vivenciam.
Assim, constata-se que na relação do paciente com a máquina ou rim
artificial predomina a existência de uma relação ambígua e conflituosa, portanto
produtora de tensão, medos e mal estar, o que vem legitimar a demanda de uma
intervenção psicanalítica, uma vez que aí estamos no registro da subjetividade.
No texto “Psicanálise” (1926[1925]), Freud afirma que, diante do perigo de
castração ou de algo que remete à castração, como a doença e morte, o sujeito entra em
angústia. A angústia seria o sinal desse perigo, pois as defesas mobilizadas pela angústia
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e pelos conflitos são trazidas pelo saber-se portador de uma doença grave e, por outro
lado, um não querer pensar sobre esse assunto para defender-se do sofrimento.
Entende-se que, apesar da complexidade em se quantificar os fatores
subjetivos, não se pode de forma alguma, excluí-los das considerações acerca da
qualidade de vida dos pacientes, pois a percepção subjetiva propicia visão integral da
situação de cada paciente em particular, de forma singular. Cada indivíduo irá reagir de
uma determinada maneira nas mais diversas situações e contextos a que for submetido.
Uma possibilidade de melhoria da qualidade de vida do paciente portador de
IRC seria a realização do transplante de rins (TxR). Entretanto, embora a realização do
transplante se configure na melhoria da qualidade de vida e em uma fonte de esperança
para muitos pacientes, estes enfrentam desafios após o transplante. Estes pacientes
vivenciam muitas situações estressantes, sendo referidas as alterações na dieta, seguidas
por modificações nas atividades de lazer, perda financeira e interferência na capacidade
para o trabalho. Há restrições, perdas e ameaças com as quais o transplantado tem que
conviver, ainda mantendo uma condição crônica de saúde.
Contudo, o transplante renal ainda não impede que o paciente volte ao
tratamento dialítico enquanto aguarda um novo transplante, caso perca o enxerto. O
transplante pode apresentar também suas complicações, sendo as principais as rejeições
agudas, as infecções bacterianas e/ou viróticas e a falência do enxerto. Tais riscos têm
maior incidência no período imediatamente após o TxR, mas diminuem com o tempo.
É necessário, portanto, assistência psicológica conjunta antes mesmo do
transplante. Há duas diferenças importantes entre o transplante renal e o de outros
órgãos sólidos. A primeira é que o transplante é uma entre as várias terapias de
substituição de função para o paciente com IRC. Pela possibilidade de escolha, o
paciente pode se considerar responsável pelas conseqüências. A outra peculiaridade é
que o rim pode ser obtido de doador vivo e, se o transplante falhar, doador e receptor
podem se sentir culpados e responsabilizados. Diminuição da qualidade de vida e
depressão são particularmente pronunciadas em pessoas nas quais houve fracasso do
transplante e estão recebendo diálise, pois podem se sentir culpadas por terem
desperdiçado ou sacrificado um rim.
Nesse sentido, é preciso que o analista esteja atento às soluções dadas pelo
próprio sujeito, as quais muitas vezes passam despercebidas pelos demais técnicos da
equipe. Isso exige uma imensa disponibilidade para dar lugar ao inesperado, ao que não
estava inscrito. Nessa perspectiva, elegemos como condição primeira da prática
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analítica na instituição um analista cúmplice com a imprevisibilidade do real, deixandose
guiar pela via da contingência. Assim, é preciso estar atento ao inusitado, ao que não
é possível de ser coletivizado pela equipe ou assimilado pelo sujeito. Se o analista é um
a mais no contexto institucional é, por outro lado, aquele que suporta o intratável, o
resto não eliminável que constitui a divisão inaugural do sujeito.
O suporte familiar aponta que o bom relacionamento entre o paciente e seus
familiares é fator importante para minimizar a ocorrência de transtorno psiquiátrico.
Suporte social está associado com menor freqüência de sintomas depressivos em
indivíduos sob diálise.
Outro ponto de grande relevância é a qualidade do vínculo do paciente com a
equipe de saúde para o bom andamento do tratamento. O convívio com os auxiliares é
bem mais forte do que com os médicos. Portanto, a relação equipe de saúde-paciente
reflete diretamente na evolução do tratamento, pois o receio de uma assistência
impessoal incrementa o sentimento de desamparo nessas pessoas e a destituição
subjetiva experimentada, frente às perdas e desestabilização impostas pela doença e pelo
internamento hospitalar. Daí a relevância de uma assistência mais particularizada e
próxima que possa, de alguma forma, lhes restituir a dignidade perdida e a posição de
sujeito.
Nesse sentido, o trabalho do psicanalista, intervindo em cada caso, poderá
favorecer a busca de um projeto vital realístico que dê sentido à vida e resgate o sujeito,
retificando-o subjetivamente. Entretanto, essa elaboração desejante é intransferível,
portanto, singular. Não se pode padronizar desejos, estilos, nem qualidade de vida.
O que se pode arriscar dizer é que parece imprescindível aos pacientes a
busca do prazer possível, investindo na vida, operando com as limitações e com as
faltas, pela via do desejo. Entretanto, não estamos aqui ingenuamente propondo a busca
de uma harmonia ideal ou de uma subjetividade sem conflitos e mal-estar. Isso seria
mesmo impossível. Joel Birman, em seu livro “Mal estar na Atualidade: a psicanálise e
as novas formas de subjetivação” (1999), ressalta que:
A figura do analista não é, pois, um remédio, tampouco um fármaco
capaz de promover a salvação das almas sofrentes. Isso porque a
psicanálise não é um saber médico capaz de gerir a terapêutica das
enfermidades. Além disso, as dores provocadas pela existência não
são doenças no sentido médico do termo. Dessa maneira, a figura do
analista seria a de alguém capaz de sustentar radicalmente a
experiência limite da morte indicada pela dor do desamparo,
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acreditando que, da fronteira com o horror do impossível, o sujeito
vai advir (1999, p.46).
Dessa forma, é imprescindível que a sociedade de um modo geral e a medicina
em particular se aproximem e conheçam a dimensão subjetiva, a problemática da saúde
emocional e as potencialidades subjacentes do portador de doenças crônicas e terminais.
Muito pouco se sabe sobre como o indivíduo acometido pela doença percebe a si
mesmo e ao seu processo de adoecimento. Isso será apenas o primeiro passo para
estabelecer uma atenção psicológica e rastrear os fatores materiais e sociais que
determinam a angústia e a depressão que rodeiam esse sujeito.
A contemporaneidade traz para o campo da ética uma abordagem do sujeito e
um posicionamento do analista em direção ao real. A Psicanálise não se coloca
indiferente às criações subjetivas no mundo contemporâneo. Nessa perspectiva, o
analista deixa de lado o caminho solitário percorrido em outras épocas, quando a cultura
ainda se sustentava em torno do Pai e dos Ideais, para integrar-se a uma equipe de
profissionais sintonizados no campo da saúde física e psíquica.
A Psicanálise tem como objeto a subjetividade, propondo-se a ir além do
visível, sustentando uma escuta daquilo que só se ouve em momentos de medo e dor
intensos. Ela pressupõe um sujeito dividido por um saber que não se sabe, um porvir
que desconhece.
Contudo, o analista na instituição deve falar a linguagem dela, sem submeterse
a ela, pois é aquele que ajuda a civilização a respeitar a articulação entre normas e
particularidades individuais. Mais além das paixões narcísicas das diferenças, tem que
ajudar, mas com os outros, sem pensar que é o único que está nessa posição. Assim,
com os outros, há de ajudar a impedir que, em nome da universalidade, esqueça-se a
particularidade de cada um, esquecida na igreja, no hospital, na sociedade analítica, na
saúde mental, na escola, em todas as partes.
Sabe-se que o analista de hoje vive em uma época fragmentada entre a
globalização e as exigências de singularidade. Como método de tratamento e de
investigação, a psicanálise se insere em uma ética fundada a partir da solução singular
dada pelo sujeito à errância do seu desejo e a seu modo de gozo.
Entretanto, a Psicanálise pode contribuir em relação ao surgimento dos
sintomas e sua significação inconsciente abrindo discussão junto à equipe de
profissionais, sobretudo na clínica hospitalar, sobre a importância da escuta do sujeito e
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não apenas a observação da doença. Muito embora o psicanalista, não tenha como
demonstrar a existência do desejo e do gozo, pois eles, em um certo sentido, não
existem. Essa falta de elementos dificulta a resposta a outros profissionais. Resta
relançar esse resto que sobra das intervenções médicas à categoria de questão e apostar
que o sujeito trabalhe.
Portanto, várias são as possibilidades de contribuição da psicanálise ao trabalho
institucional no que diz respeito ao tratamento de pacientes portadores de insuficiência
renal crônica, entre outros. Qualquer que seja o recurso utilizado na instituição, quando
a prática psicanalítica faz parte desse contexto, o trabalho estará sempre atrelado à
escuta singular do caso pois, para que uma rede de sustentação subjetiva e,
conseqüentemente, social possa, de fato, ser efetivada, é necessário que o trabalho
coletivo realizado no contexto institucional não prescinda do individual, e vice-versa.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIRMAM, Joel. Mal Estar na Atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
FREUD, S. Luto e Melancolia. 1916[1915]. In: Obras Psicológicas Completas. vol. XIV. Rio
de Janeiro: Imago, 1980.

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