quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Psicanálise e Ciência: um sujeito, dois discursos

Hilana Erlich*


           A proposta desse trabalho é investigar a relação entre psicanálise e ciência a partir da noção de sujeito. De acordo com Lacan, o surgimento da psicanálise, só foi possível a partir das condições instaladas pela ciência moderna, cujo discurso introduziu uma marca essencial à psicanálise.
          A marca de que se trata diz respeito à noção de sujeito, termo usado por Lacan para apontar o ponto de interseção entre esses campos. Em seu texto “A ciência e a verdade” (1966), Lacan afirma que o sujeito da psicanálise é o sujeito da ciência. Frente a esta postulação, surgem as seguintes interrogações: sendo o sujeito o mesmo, estaria a psicanálise no campo da ciência? Como definir este sujeito comum a ambas? Em que medida essa marca (sujeito) é fundamental à psicanálise?
          Com Lacan, pode-se dizer que a psicanálise é produto do advento da ciência moderna.

“Que é impensável, por exemplo, que a psicanálise como prática, que o inconsciente, o de Freud, como descoberta, houvessem tido lugar antes do nascimento da ciência, no século que se chamou do talento, o XVII- ciência, a ser tomada no sentido absoluto no instante indicado, sentido este que decerto não apaga  o que se instituíra antes sob esse mesmo nome, porém que, em vez de encontrar nisso seu arcaísmo, extrai dali seu próprio fio, de uma maneira que melhor mostra sua diferença de qualquer outro”(Lacan, 1966:871).



O cientificismo da época de Freud, de cujas fontes ele bebeu o conduziram a abrir a via para a psicanálise.


“Dizemos que essa via nunca se desvinculou dos ideais desse cientificismo, já que ele é assim chamado, e que a marca que traz deste não é contingente, mas lhe é essencial. E que é por esta marca que ela preserva seu crédito, malgrado os desvios a que se prestou, e isso na medida em que Freud se opôs a esses desvios sempre com uma segurança sem retardos e com um rigor inflexível”(ibidem, p.871).
          Segundo Lacan, o conceito de sujeito da ciência advém da hipótese por ele sustentado de um sujeito constituído pela determinação científica. Esta hipótese implica em dizer que a ciência moderna determina um modo específico de constituição de sujeito. É com Descartes a partir de sua formulação do cogito que esse sujeito emerge numa nova concepção.  O cogito (penso, logo sou) é resultado da experiência que fez Descartes de um despojamento de saber. Ao utilizar a dúvida como método, passou a questionar todas as idéias estabelecidas, inclusive sua própria existência. Como adquirir alguma certeza, já que nada mais se sustentava? Em meio a tantos questionamentos, Descartes elabora a seguinte resposta: “- só posso estar certo de que penso, pois mesmo que duvide, ainda assim, continuarei pensando”.
          Com o cogito, é possível verificar que o ato de pensar passa a testemunhar a existência do sujeito no simbólico, quando penso, existo. O pensamento é exigível até para se duvidar. Uma vez que há pensamento, ou seja, simbólico, linguagem, há ser. O cogito afirma o ser enquanto pensante. Ao tomar o cogito como referência para sua definição de sujeito da ciência, portanto, também da psicanálise, Lacan sublinha a importância da dimensão simbólica do sujeito, acrescentando a proposição de Descartes de que existe pensar, o fato de que há um sujeito que pensa. O cogito tem valor para a psicanálise na medida em que inaugura o sujeito em sua vertente simbólica. É somente nessa vertente que algo pode ter valor de existência para o ser falante. Apesar de não abarcar tudo, já que para a psicanálise o simbólico é incompleto, é neste campo que o trabalho de análise vai se dar debruçando-se sobre o que é da ordem do pensamento, fala e linguagem.
          A interrogação do saber existente por meio da dúvida causou em Descartes o efeito de uma destituição subjetiva, ou seja, Descartes sofreu um esvaziamento, descentramento da imagem que o definia como sujeito. Se o que sustentava a imagem através da qual se reconhecia era o saber até então existente, uma vez questionado e não mais conservado, por um instante, eis que a imagem se desfaz. Por um momento desse processo, ao cair o saber, surge o sujeito na sua certeza de sujeito pensante.

          Trata-se do sujeito que se funda num para além da consciência, que encontra sua ancoragem no momento evanescente e pontual em que duvida. Despojado de garantias, atributos e significações, só pode se constituir como resíduo, na dúvida, na incerteza do saber, no intervalo entre dois significantes, num instante. Este instante de interrogação em que algo da verdade do sujeito aparece e causa uma ruptura com o que antes já estava estabelecido, é o que Lacan nomeia de sujeito do inconsciente. Trata-se de um intervalo, cuja pontualidade da manifestação acarreta uma desorganização da estrutura consistente do eu.
          Como exemplo, pode-se pensar no ato falho que enquanto manifestação do sujeito do inconsciente, ao ser escutado, introduz uma nova significação, fazendo corte no saber existente do eu, logo, convocando ao trabalho. Esta experiência causa estranheza ao eu, que se surpreende com o aparecimento de algo que aponta neste primeiro momento, um sem sentido na sua rede construída de sentido. Lacan provoca: “Qual é, pois esse outro a quem sou mais apegado do que a mim, já que, no seio mais consentido de minha identidade comigo mesmo, é ele que me agita?” (Lacan, 1957, op cit, p.528).
O processo de destituição subjetiva implica numa queda da vertente imaginária do eu que se pretende total, de modo que o saber que o sustentava cai, fazendo aparecer a verdade da divisão. Este saber, é um saber egóico, em outras palavras, saber sabido, que muitas vezes aponta o engano do sujeito.

        

          O que Lacan extrai do cogito, é a noção da divisão subjetiva, em que o sujeito marcado por um saber surpreende-se com a aparição de um saber não sabido. Conclui-se daí que o sujeito da ciência nomeado por Lacan equivale ao sujeito tal como definido pela psicanálise, sujeito dividido entre saber e verdade.
        
          Considerando o sujeito do inconsciente como o que porta uma verdade do sujeito, a psicanálise passa a situar o campo do simbólico como não-todo. Isto se coloca, na medida em que este sujeito só pode aparecer enquanto furo, numa estrutura que não é totalizadora, isto é, incompleta. O saber do sujeito dividido é incompleto, o que possibilita espaço para o não-saber advir.
 
          Pode-se dizer que Descartes através do cogito tirou a conseqüências com relação a subjetividade, daquilo que Galileu criou como modelo para a ciência moderna, ou seja, a física moderna, matematizada. Enquanto operação introdutória da ciência moderna, a física matematizada, ao submeter seu objeto a tal operação o despoja de suas qualidades. De acordo com Milner, uma teoria do sujeito que pretenda responder a tal operação da física deverá também despojar o sujeito de toda e qualquer qualidade. Esse sujeito despojado de qualidades que segue a determinação científica é o sujeito da ciência. É o existente que o cogito faz emergir, ou seja, um sujeito sem qualidades, cujo pensamento que atesta sua existência também é qualquer. Esse existente chamado de sujeito por Lacan, responde ao gesto da ciência moderna, no sentido de trazer para o sujeito as características científicas. O pensamento sem qualidades inaugurado pelo cogito é a marca da ciência essencial à psicanálise, ou seja, o despojamento de qualquer atributo para o sujeito. 

          No entanto, se Lacan sustenta que a ciência inaugura uma nova concepção do sujeito, disto não decorre que este sujeito seja por ela aceito em sua operação. Ao contrário, pode-se afirmar que para constituir-se enquanto tal, ela precisa excluir este mesmo sujeito que inventa de seu campo.  Ainda que o sujeito da psicanálise seja o mesmo da ciência, daí não resultam operações equivalentes sobre este. A posição que o sujeito ocupa nestes discursos e a forma como operam sobre ele, são fundamentais na compreensão da relação entre psicanálise e ciência.
          A ciência deixa de fora de sua operação o sujeito que ela mesma gerou, de forma que se pode colocar que a psicanálise trabalha com o resto da ciência, incluindo-o em seu campo, como sujeito do inconsciente. Isto implica em dizer que é preciso ainda subverter o sujeito da ciência, ou seja, o sujeito dividido entre saber e verdade, destacando o inconsciente do qual se é sujeito para situar o sujeito da psicanálise.
          A descoberta freudiana atesta o fato de que: “o ego não é o senhor da sua própria casa”. (Freud, 1917:178), isto é, ali onde o eu se pensa único no comando dos processos psíquicos, equivoca-se, uma vez que os processos inconscientes determinam sua morada. Freud destrona o eu do lugar de unidade e saber como considerado por Descartes, para outro, do conflito e da divisão. A consciência e a razão são derrubadas de seu lugar de verdade, passando a representar o lugar do engano. A subjetividade deixa de ser entendida como um todo unitário, identificado à consciência, para ser uma realidade dividida entre os sistemas consciente e inconsciente.
          Ao introduzir o inconsciente no cogito, Lacan o reformula: no lugar de penso, logo sou - afirma: penso onde não sou, logo, sou onde não penso. Com isto, aponta um Outro lugar para o pensamento, que não o eu. Na medida em que o pensamento para a psicanálise é inconsciente, pode-se dizer que o sujeito do pensar é o sujeito do inconsciente. A partir daí coloca-se que o sujeito da psicanálise é inconsciente e dividido entre saber e verdade.
Conclui-se assim que se a psicanálise deve a ciência seu próprio surgimento na história do pensamento, não se reduziu a ela, operando uma ruptura para estabelecer sua especificidade, sob cujo nome de inconsciente atesta sua particularidade.
         



Bibliografia:

ELIA, L.”Psicanálise: clínica e pesquisa”. Em: ALBERTI, S e ELIA, L (org) Clínica e Pesquisa em Psicanálise. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000 p.19-35.
ELIA, L. “Uma ciência sem coração”, Revista Agora: estudos em teoria psicanalítica, vol II, n.2. Rio de janeiro: Contra Capa Livraria / programa de Pós-Graduação em teoria psicanalítica – UFRJ, 1999, p 41-53.
FREUD, Sigmund. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1982.
__________. (1917)“Uma dificuldade no caminho da Psicanálise” Em: Obras Completas. vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
LACAN, J.“A ciência e a verdade” Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
 _________.(1953) “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1966.
_________.(1957) “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde de Freud”. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1966.
MILNER, Jean Claude. – A Obra Clara. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996

*Autora: Hilana Erlich é mestranda em Clínica e Pesquisa em Psicanálise pela UERJ, pós-graduada em psicologia clínico-institucional no HUPE – UERJ (Hospital Universitário Pedro Ernesto) e psicóloga do PAM Oswaldo Cruz (Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro).

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