quarta-feira, 21 de setembro de 2011

É COISA QUE SE ENSINE O AMOR?

Ana Claudia Moraes Merelles Bezz
Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro

Entre areia, sol e grama
O que se esquiva se dá
Enquanto a falta que ama
Procura alguém que não há.
A Falta que ama
Carlos Drumond de Andrade

Era uma festa para muitos convidados. O que se festejava então era o nascimento de Afrodite, deusa da beleza. Entre os convidados, encontrava-se Poros, o Recurso, conhecido também como Astúcia.  Penia, a sem recursos, também viera para os festejos de Afrodite, e por se tratar da miséria, não pode entrar no local, permanecendo nos degraus, próximo à porta de entrada. Por ser Aporia, isto é, por nada ter a oferecer, não entrou na sala do festim. Mas, eis que surge algo que subverte a ordem comum: Poros, embriagado, adormece. Isso permite a Aporia, de olhos bem abertos, fazer-se emprenhar por ele e conceber um filho que se chamará o Amor.
É assim que Lacan, recorrendo a Platão, relata o mito da concepção do Amor: de um encontro de Poros, o Recurso, com Aporia, a falta de recurso, a miséria. Vemos, então, Lacan destacar dois pontos importantes com relação ao engendramento do amor: a falta e a ignorância. Aporia, por definição e estrutura, não tem nada a dar senão sua falta, aporia constitutiva. O outro ponto diz respeito ao não saber: Poros não sabia. No momento da concepção do amor, Poros, este deus, filho da sabedoria, o recurso por excelência, ignora. E assim é concebido o amor: uma conjunção da falta com a ignorância. Aliás, este tema da ignorância é o que é sublinhado também no mito de Édipo, pois também ele não sabia que tinha matado seu pai e desposado sua própria mãe. Para a psicanálise, o neurótico é aquele que ignora o seu destino ou mesmo o seu desejo e, partindo de uma falta fundamental, ama aquele que supõe responder ao que ele desconhece.
Esse amor que há séculos tem feito coisas que até mesmo Deus duvida e que ocupa demasiado os poetas, bem cedo aparece na história da psicanálise. Freud se deparou com o fato de que o tratamento analítico, fora dos moldes da hipnose, ocasionava o surgimento de algo chamado amor de transferência: uma ligação erótica do paciente àquele que viria ocupar o lugar do analista, como se a presença do analista reativasse no sujeito a capacidade de amar. E com muita sabedoria, aconselha Freud aos principiantes na arte de psicanalisar : é recomendado que, no início da análise, não se incentive o paciente a tomar decisões muito radicais em sua vida, incluindo a de  se casar. Nos primórdios da construção do edifício psicanalítico, o que faz o seu parceiro Breuer fugir arrebatado pelo amor da primeira paciente da psicanálise, Anna O., impulsiona Freud a não recuar diante desta surpresa, descobrindo assim que esse fenômeno espontâneo e inquietante era manejável pela interpretação.
O que leva alguém a endereçar um pedido de análise? O que o sujeito procura quando vai ao encontro de um analista? O analisando, empobrecido em sua questão sintomática, irá se dirigir a um analista para amar o que pensa se esconder como saber no Outro. Sendo assim, o que o sujeito de fato ama é o saber sobre o seu desejo que é no entanto o que ele ignora. A transferência é o que vai balizar todo o percurso da análise, e o endereçamento do amor transferêncial tem a ver, fundamentalmente, com isso: amar no Outro o  saber, a busca da verdade. A Histérica, aquela que inaugura a psicanálise, assim o faz: supõe que o que o outro guarda a chave de seu desejo. No entanto, se o sujeito se endereça a alguém, se procura algo é porque lhe falta; é também porque lhe falta que ele ama. Mas o neurótico é aquele que imaginariza a falta. Vive a falta como fracasso, como derrota. Vive o desencontro como má sorte e supõe que uma vez encontrada a pessoa certa estará livre de todos os males. E é justamente por haver a inscrição de uma falta naquele que ama que ele vai se endereçar ao Outro, vai formular ao Outro o que ele tem a dar e a responder. Essa é a estrutura que põe em funcionamento o movimento transferencial.
É coisa que se ensine o amor?  Se o sujeito ama para saber, entretanto, basta amar para que caia presa da hiância, da discordância em jogo no amor, uma vez que aquele que ama descobre fatalmente que não há coincidência entre o amante e o amado: o que falta a um não é o que existe escondido no outro. Há , portanto, a inscrição de uma falta naquele que ama. O amor está articulado em torno dessa falta pelo fato de que, daquilo que deseja, só se pode ter sua falta, nos diz Lacan, já que o único objeto em jogo na psicanálise é o objeto a, ou seja, a falta de objeto, o objeto causa de desejo.
A situação analítica propõe que alguém se isole com outro para ensinar o que?, nos pergunta Lacan, no Seminário sobre a Transferência. E  responde : “Aquilo que lhe falta, e devido à natureza paradoxal da transferência, o que lhe falta, o sujeito vai aprender amando.” O analista é aquele que acolhendo, mas não respondendo à demanda de amor do seu analisando- e aí está a causa de sua abstinência- visará que compareça o seu desejo. É dirigindo o amor ao analista  que o sujeito encontrará uma não resposta, um desejo opaco por parte daquele que tem o propósito de levar o sujeito a aceder a uma posição desejante, a sair do lugar do amor, lugar este que espera o objeto adequado, a  busca da outra metade da esfera  na tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana, como diria Aristófanes, para defrontar-se com sua própria causa. Se acontece do sujeito encontrar um analista é isso que ele irá aprender: Não há Outro garantidor e a verdade sobre seu desejo, é o próprio sujeito que a  possui. A análise é um percurso que leva o sujeito da ignorância do amor ao saber sobre o desejo, saber não todo, posto que considera a falta.
E então, é coisa que se ensine o amor? Se uma análise chega ao fim é porque aquele que se submeteu a essa aventura aprendeu a amar. Aprendeu a amar,  como nos adverte Lacan, no que isso se difere do amor, pois o amor, enquanto tal, visa o objeto adequado. O encontro entre um analisando e um analista talvez se assemelhe ao encontro de Poros e Aporia. Um, o analisando, ama porque ignora e, o outro, o analista, se ignora o que move aquele sujeito, pois deve escutar cada caso como se nada soubesse , sabe, no entanto, sobre a falta. A aventura a qual se submete um analisando passa pela aventura com relação ao amor.  O que ele encontrará na sua análise é de fato um Recurso, Re-curso, que na trajetória do amor de transferência coloca o sujeito novamente em curso, livrando-o da paralisia na qual o sintoma aprisiona o sujeito, levando-o a ter recursos para gerir o seu próprio desejo.
Será que alguém ( incluindo você ) ainda precisa de Freud? Essa era a chamada de uma revista de circulação nacional que preconizava o fim da psicanálise. Ora, mas é de fato uma tolice supor que essas reflexões são importantes somente para os porões fechados, o leito onde se passa uma análise pessoal ou mesmo os guetos dos poetas. Isso tem a ver com os efeitos do retorno do recalcado na civilização, principalmente numa época na qual vemos o ódio ruir prédios, fomentar guerras; ódio que não é outra coisa senão a outra face do amor, amódio. Então, para o psicanalista, não se trata nem de amor nem de ódio, mas de amar, amar a diferença, causa de uma psicanálise.

Bibliografia:
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 8- A transferência
Banquete de Platão
ANDRADE, Mário -  Amar, verbo intransitivo
FREUD, Sigmund - Artigos sobre técnica
Colóquio do LEPSI IP/FE-USP
Psicanálise, infância e educação

 An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2001

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